Manifesto da VI Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia

Prestemos atenção: desde 1500, tudo que acontece no Brasil acontece primeiro com os índios. Não é de hoje que testemunhamos o contínuo esforço de converter a vida que vibra nas florestas, campos, águas ou rochas em recurso produtivo a serviço de sistemas e modelos econômicos variados, mas sempre predatórios e excludentes. Hoje, está claro que isso requer desmontar os direitos dos povos indígenas, quilombolas, camponeses e populações tradicionais duramente conquistados nas últimas décadas.

Esta semana, foi aprovado o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar a atuação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) na demarcação de Terras Indígenas e de remanescentes de quilombos, um documento que expressa a violência e a persistência destas ações.

Acusados de serem entraves ao “progresso”, à “prosperidade” e à “soberania nacional”, o que esses povos, no entanto, insistem em fazer é nos alertar sobre as consequências fatais de um modelo de desenvolvimento baseado na exploração descontrolada de tudo e todos que existem sobre e sob a terra – pessoas, árvores, animais, montanhas, rios –, reduzindo-a a uma paisagem que se divide entre o concreto e a monocultura, como únicas formas possíveis de habitar o planeta. O que faz o citado relatório, ao criminalizar povos e suas lideranças, além de seus aliados – organizações da sociedade civil, antropólogos, indigenistas, servidores públicos e procuradores da República –, é atacar os modos de existência que desafiam tal modelo.

Desde a Constituição de 1988, o direito dos índios à diferença só tem sido admitido quando domesticado em expressões “culturais” ou “folclóricas”, mas não quando recusam os ordenamentos jurídicos, políticos e econômicos historicamente impostos a seus corpos e suas territorialidades, por meio de massacres, escravização, expropriação e abandono. Essa é uma história de profunda violência que é repetidamente negada, por discursos que chegam ao absurdo de afirmar que “terra não enche barriga de ninguém”. Para quilombolas, quebradeiras de coco, indígenas, pescadores, beiradeiros, camponeses, a terra enche barriga sim – e faz muito mais que isso.

“Terra é vida”, de fato. O que vimos assistindo, desde as cidades, com o acirramento dos conflitos no campo, é a generalização e continuação do genocídio indígena que mancha de sangue os tão “sagrados” solo e PIB brasileiros. Enquanto isso, desde o interior, o que assistimos é o genocídio do povo negro nas periferias das grandes cidades, e a precarização profunda da vida e da existência nesses espaços. É urgente que nós, que vivemos nos centros urbanos e por meio de nossas mercadorias, compreendamos o princípio político em que se baseia conexão dos povos tradicionais com o que genericamente chamamos de terra: o respeito incondicional às diversas formas de vida que a constituem. O que esses povos ensinam e demandam incessantemente é o respeito, a eles e às terras que lhes são de direito, abrigo seguro da biodiversidade e talvez uma das únicas formas de garantir algum futuro para todos nós.

Como alerta o povo Guarani, em sua carta de repúdio à CPI FUNAI/INCRA 2: “Se não houver terra para todos os povos indígenas, para os quilombolas, para os que vivem da terra mesmo, não haverá terra para ninguém”.

É com o mesmo sentimento que nós, participantes da VI Reunião de Antropologia da Ciência e da Tecnologia, afirmamos: não vamos recuar. Antropólogos, ao contrário do que vem sendo afirmado, não defendem simplesmente culturas, mas vidas. A morte dessas culturas que não se separam da terra é a morte dos modos de existência que a animam.

São Paulo, 19 de maio de 2017

 


A VI ReACT aconteceu no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, em São Paulo, entre os dias 16 e 19 de maio de 2017.

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